TOR

Por Arnaldo Rivotti

Autor: Géza Csáth

A noite de Inverno tinha chegado ao fim… e lá longe, para além da negrura dos casarios, onde o campo termina numa linha desfocada – uma courela cinza apareceu adedentro do céu. Lá em cima, as estrelas ainda brilhavam. E no meio das casas, na escuridão profunda e sem sombra, onde a respiração das pessoas adormecidas podia ser ouvida, nada se sabia sobre essa jeira cinzenta.

Maris virou-se na cama, abriu os olhos e olhou pela fenestra. Depois, sem pensar, saltou da cama sã e vigorosa e calcorreou as lajes frias da cozinha. Os seus pés nem sequer arrefeceram. Acendeu um fósforo de enxofre e, afagando o cabelo à cara, esperou que a chama afogueasse. Quando aconteceu, acendeu o candeeiro da cozinha e pôs-se a trabalhar. Não precisava de se vestir, pois tinha dormido com a roupa, tirando apenas o saiote com que dormira. Penteou o cabelo, trançou-o muito rapidamente, e prendeu-o com dois alfinetes. (Tinha cabelo curto e louro, como um novelo, daí não se incomodar muito). Enxaguou e esfregou o rosto jovem de quinze anos, ensaboou as mãos enérgicas e arroxeadas cobertas de finas sardas loiras.

Fez tudo isto afervoradamente, com emoção instintiva, tal como um autómato. Finalmente calçou os chinelos, fez a cama e saiu da cozinha.

Lá fora, uma leve cacimba caía e as pedras no pátio estavam escorregadias. A rapariga acotemeu-se num imprevisto.

– “Ha-ha!” gritou ela entre os dentes.

No fundo do quintal a marrã, cuja matança era devida hoje, grunhia e afocinhava em leves investidas.

Maris foi ter com ela e acariciou-a:

– “Bem, já estás acordada, minha dorminhoca, deixaste-te dormir, minha pobre porca, hoje é o teu abate, o matador da faca grande está a chegar e afundála-á no teu pescoço, pobre órfã”.

Grunhindo, a porca esfregou-se de forma dissimulada  na rapariga, que logo correu para o alpendre da lavagem, acendendo uma fogueira junto à lareira.

O frio amargo de janeiro não era mais ameno aqui, e foi como se a geada se tivesse incrustado nas paredes e no chão. No entanto, o corpo pouco revestido, forte e bonito de Maris não tremia. Ajoelhou-se sobre a pedra fria, soprou sobre o fogo, e empilhou a palha e a madeira em cima dela, até que apenas as chamas estalaram no braseiro. Depois acordou o cozinheiro, preparou as facas, e apressou-se a voltar para o fogueira. A porca grunhiu à porta do pátio das lavagens, e Maris respondeu-lhe:

– “Sim, digas o que disseres, serás morta hoje. O magarefe, virá munido de uma comprida faca de bico, e apunhala-te na garganta, bem podes chorar, que nada te adianta”…

Ao atear o fogo, o pátio tornou-se cinzento, e apenas algumas estrelas podiam ser vistas no céu. Entrou um homem no pátio. Era o matador. De semblante musculado com uma cara anafada, forte bigode, o camponês era um mocetão sobre o qual seria impossível dizer se tinha vinte e cinco ou quarenta anos.

Dirigiu-se ao alpendre da lenha.

– Bom dia!

– Deus vos abençoe!

Sem palavras espalhou as suas facas, tirou o casaco, arregaçou as mangas da camisa e vestiu um avental. Fez tudo isto lenta e cuidadosamente, e enquanto o fazia, mantinha os olhos postos em Maris. Depois olhou para o fogo, mergulhou o dedo na água quente.

– Muito bem, grande menina”, disse ele, e bateu com a palma da mão no ombro de Maris.

Maris não se virou, apenas abanou a cabeça de forma desafiadora, embaraçosa, e continuou a colocar a palha.

Uma hora mais tarde, estava tudo a postos. No pátio, as crianças, os jovens senhores e a jovem senhora.

A porca foi logo antecipada para a cabeçalha de quatro pernas. O carniceiro acabou de subir, deitou-lhe as mãos à cabeça, colocou-a entre as pernas, e uma a uma acabou com ela de vez. Maris cobriu o seu rosto com o avental. As crianças começaram a gritar:

– Ei, Maris pareces assustada!

A porca não roncou muito mais tempo. Uma hora depois, estava na cozinha desmanchada e esquartejada. A casa estava impestada com o cheiro da carne de porco. Na cozinha, o toucinho e a carne estavam sobre as mesas, as panelas estavam manchadas, e a água estava a ferver no fogo.

O açougueiro, o cozinheiro e a Maris trabalharam arduamente. Ao meio-dia, só ficaram as morcelas e as chouriças. O talhante, que estava a jantar lá dentro à mesa, bebeu um pouco demais de vinho e cortou alegremente a carne recheada. As raparigas estavam a lavar as entranhas. Quando terminaram, a Maris mostrou-as ao talhante.

– “Ainda não estão boas”, disse o carniceiro, quando o examinou, “não poupes as mãos, menina grande (fazendo cócegas a Maris), ou nunca terás nenhuma.

– ‘Poupa o raio da coisa’, gritou a rapariga, e bateu com o punho nas costas do carniceiro, e corou.

À noite tudo estava pronto. Os rolos de chouriças, os presuntos, o toucinho estavam a repousar na despensa; o açougueiro ainda estava no lavadouro, limpando os porcos.

– Ei, Maris, vem cá”, gritou-lhe ele.

Não havia mais ninguém no alpendre das lavagens. No andar de cima o cozinheiro estava a preparar o jantar. Todo o interesse da matança de porcos desaparecera, apenas o cansaço do trabalho árduo e a languidez que se infiltrava na mente com o cheiro forte de sangue e carne. No exterior era uma noite fria de Inverno, enquanto o calor do fogo na cozinha se espalhava.

Logo que a Maris entrou na cozinha, o magarefe enrolou-lhe os braços à volta da cintura e abraçou-lhe o corpo inteiro.

Tinha sido abraçada por outros, mas nunca sentiu o abraço – ela escorregou, bateu e correu. Mas agora o braço muscular estava sobre ele, preso e paralisado pelas enormes cordas de carne. A sua respiração estava quase a desaparecer, ele não conseguia gritar.

Meia hora depois, estava a caminhar no pátio com uma bandana sobre os olhos.

– A minha mãe dar-me-lo-ia se pudesse. Ela destruir-me-ia, ela devia. A minha querida não me disse que eu seria assim se fosse estúpido… disse à minha querida, como a Gretel do Ferreiro… como a Gretel…

Depois chamaram-no. Ela teve de ser colocada na cama e servida ao jantar. Havia muitas coisas. Ela teve de pôr o bebé a dormir. Ela estava a mexer com a criança e a beijá-la.

Só quando foi para a cama é que se lembrou novamente do bebé que tinha acabado de pôr a dormir.

– Vou ter… grandes problemas com o…” ela consolou-se; no entanto começou a chorar tranquilamente. Mas o choro foi muito breve, pois Maris logo adormeceu facilmente, com o sopro claro e longo do cansaço.

 

Tradução: Arnaldo Rivotti

 

TOR – Matança do Porco

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