1.
Gosto de me levantar cedo pois nesta altura do ano, o calor é muitas vezes insuportável. Do meio-dia às três da tarde, ficamos incapazes de fazer seja o que for. Até os cães apertam doentiamente os olhos, pondo descomedidamente a língua de fora e quando os amoestam, olham confusos, nem sequer se mexem ou pestanejam.
As manhãs de julho são maravilhosas, quando o bom tempo é para durar, o sol ainda não é de fogo, mas claro e amistosamente radioso e derrama uma luz fresca que se eleva majestosamente, como se levantasse voo.
É de manhã que a magia acontece. As cores mostram-se suavizadas, mas nada deslumbrantes. É de manhã que o tempo outorga profundidade e perspetividade e nos dá pertença ao lugar. É também de manhã que o amor à primeira vista acontece. Talvez seja esta a relação dos portugueses com o bacalhau. Um amor à primeira vista que também aconteceu numa manhã.
Quem visse o cocheiro de D. Maria I, quem pudesse ser o testemunho daquela exacerbação, com que emborcava um copo atrás do outro sentiria medo, com certeza. Nasceu a manhã; uma candeia de azeite bruxuleava ainda na mesa. O cocheiro deixou de vaguear de um canto para o outro; estava ali sentado todo rubro, com os olhos turvados que ora fixavam no chão, ora levantava a janela escura; erguia-se, enchia o copo, voltava a sentar-se, de novo fixava os olhos num ponto e não se mexia. – apenas a sua respiração se acelerava e a cara se avermelhava ainda mais. Vivia apavorado. Parecia amadurecer nele um tremor pela doença de caráter religioso da rainha, com insultos curtos e explosivos aos seus confessores e manifesto pavor a crucifixos e lugares sagrados. A monarca tinha visões do diabo e achava-se condenada à perdição eterna. Passou a seguir uma dieta estranha (bacalhau com ostras e cevada) e falava palavrões de modo incoerente. O desespero do cocheiro com o estado da rainha era enorme e de grande apavoramento.
– Bem, está na hora! – pronunciou num som prático, quase impassível – Chega de perder tempo! Já nasceu o Sol!
Emborcou o último copo de vinho «para o que desse e viesse» e foi à cavalariça. O guarda acorreu quando o cocheiro começou a abrir a porta, mas o cocheiro gritou-lhe: «Sou eu não vês? Vai-te embora!».
É claro que o cocheiro desapareceu na curva do caminho que ia na direção de Mafra, para apanhar D. Maria I, a “Louca”, filha de D. José.
A importância do bacalhau era tanta que diz-se, que a primeira vez que a rainha D. Maria I andou a pé por Lisboa foi depois de ter isentado o bacalhau de imposto – vinha ela de um passeio no Tejo e a população quis-lhe agradecer, pelo que a rainha terá atravessado o Terreiro do Paço a pé.
2.
Anos antes, empenhados em navegar e descobrir novos mundos, já portugueses e espanhóis enchiam os barcos de bacalhau para as tripulações aguentarem as longas viagens. E os que ficavam em terra, iam também comendo cada vez mais este peixe. É ainda Kurlansky quem o diz: “À volta de 1508, 10 por cento do peixe vendido nos portos portugueses do Douro e Minho era bacalhau salgado da Terra Nova. Em meados do século XVI, 60 por cento de todos os peixes comidos na Europa eram bacalhaus, e esta percentagem manteve-se estável nos dois séculos seguintes.”
E foi assim que o bacalhau foi chegando a Portugal, onde entrou primeiro pelo Norte. “Qual era o primeiro porto com capacidade para barcos de grande porte nos séculos XVII e XVIII? Era Viana do Castelo. Talvez por isso o Minho seja a região de Portugal que tem maior variedade de receitas de bacalhau.” Virgílio Nogueiro Gomes, gastrónomo transmontano, lembra-se bem de como na sua infância havia as carnes, o polvo e o bacalhau, e só depois o peixe. “Comi os primeiros peixes frescos em Zamora (Espanha), porque chegar peixe fresco a Bragança… chegava a sardinha na época das vindimas porque os galegos faziam questão de comer peixe.”
Poucos são os alimentos que possuem uma identificação tão forte com o lugar como o bacalhau. Não importa o preparo: à Zé do Pipo, à Gomes de Sá, à Brás, à Lagareiro… esses pratos outorgam a profundidade e perspetividade do povo ao longo do processo de criação da sua identidade e transmitem também a forma de civilização e características dos portugueses.
Nobre (2013), define que o bacalhau não é apenas um peixe para os portugueses, mas sim uma história de amor única no mundo, entre um país e um alimento que nem sequer legitimamente é seu. Uma autêntica história, esta relação dos portugueses com o bacalhau.
Amor quase incompreensível por um peixe que mora a milhares de milhas, sendo a nossa costa tão rica em espécies. Mas só aqui alcança a plenitude, seco, protegido e embelezado pelo sol, pelo sal e pelo azeite de Portugal (Zé Quitério, 1997).
Por mais diversificadas que sejam as regiões, as receitas de bacalhau remetem-nos à pátria e conferem-nos um orgulho de pertença ao lugar, uma vez que se fizeram presentes no passado e continuarão a fazer parte da memória gustativa de quem as provou.
A importância do bacalhau foi oficialmente reconhecida, quando a gastronomia portuguesa foi elevada primeiramente a bem imaterial do património cultural de Portugal no ano de 2000, e posteriormente a Património Cultural Imaterial da Humanidade, em 2013.
O cocheiro de D. Maria I, continua sem perceber o porquê do bacalhau ser tão nosso…
Com o bacalhau, só mais um copo de vinho… E assim recolheu às cavalariças e voltou a acender a candeia…
Ainda o sol não tinha rompido o horizonte quando o cocheiro de D. Maria I, tirava a traquitana real de baixo do alpendre e começava a tratar dela e dos cavalos. Ora desprendia os tirantes, ora os amarrava com força.
Insistia em atrelar o branco e o ruço ao meio, porque eram «bons nas descidas» e os outros iam no varal. Conferiu todas as fivelas das correias, o encordoamento das rédeas e a colocação dos cabrestos nos animais.
Todo o cuidado era pouco pois desceria os empedrados íngremes das colinas da Ajuda, em direção ao Tejo.
Pouco passava das seis de uma manhã fresca de julho. No palácio real, o sono ainda emudecia a maioria dos rostos dos serviçais coordenados com o clarear do novo dia.
A monarca já tivera tempo de desjejuar algo leve e de voltar de lá dos aposentos do Paço Real, vestida com uma linda echarpe de seda pintada à mão, com flores vermelhas por toda a seda, que lhe acariciavam os ombros, subindo solenemente a boleia.
Queria ver Belém e passear a pé pelo Tejo. Dispensou as aias e os serviçais e acomodou-se entre os acolchoados da carruagem. Não tardou em adormecer.
A traquitana arrancou, virando o portão do palácio para a rua; o ruço quis correr na direção da colina, mas o cocheiro chamou-o à razão com várias chicotadas.
A manhã era calma e bonita, ótima para passear. A aragem sussurrava nos arbustos, baloiçando-lhe os ramos. No céu, aqui e acolá viam-se algumas nuvens que se dissipavam com o espalhar do sol.
Fagundes, ainda falta muito?
– Até Belém, minha Alteza? Algumas duas léguas.
«Duas léguas – pensou D. Maria I – Não menos de uma hora até lá. Posso dormir ainda.»
– Fagundes, conheces bem o caminho? – perguntou a rainha.
– Conheço-o bem, minha Rainha! Não é a primeira vez que o faço.
O cocheiro acrescentou mais qualquer coisa, mas a monarca nem sequer o ouviu… adormecera novamente. Não acordou porque fosse sua intenção acordar, como acontece muitas vezes, mas por ovação e alarido do povo que a esperava em triunfo no Terreiro do Paço.
Vivia-se o apogeu do bacalhau e o país prosperava. A importância do bacalhau era tanta que diz-se que a primeira vez que a rainha D. Maria I andou a pé por Lisboa foi depois de o ter isentado de imposto – vinha ela de um passeio no Tejo, com o seu amigo e cocheiro Fagundes, e a população quis-lhe agradecer, pelo que a rainha terá atravessado o Terreiro do Paço a pé.
– Está tudo estragado! – barafustava Fagundes para os seus botões. Tudo corria tão bem.
Maria I ainda hoje é lembrada de diferentes maneiras. Uns apelidavam-na de a Louca, outros de a Piedosa. Ambas as designações fazem sentido. Inteligente e culta, D. Maria tinha paixão pelas artes, e era dotada de grande sensibilidade para a música, literatura e pintura. Era educada no trato, e requintada no gosto. Tinha uma predileção por uma estranha receita que só Fagundes preparava a preceito. Cevada com ostras e bacalhau…
Gostava de comer bem e denotava grande interesse pelas artes culinárias. Consta que ela e o marido D. Pedro I, contrataram na altura um grande chef francês, Lucas Rigaud, profissional de grande tarimba que já tinha atuado em algumas importantes cortes da Europa, como Paris, Londres, Turim e Madrid, tal como é descrito por João Pedro Ferro, no livro Arqueologia dos Hábitos Alimentares das Publicações D. Quixote (lisboa, 1996).
Rigaud terá chegado à corte em 1744, tendo-se naturalizado português em 1762. Chegado a Portugal, encontrou uma cozinha arcaica, pesada e exagerada em condimentos.
Consta que Rigaud tenha operado uma verdadeira revolução nos hábitos alimentares da corte e do País. Reduziu o uso das gorduras de porco e privilegiou carnes mais magras e brancas, além de ensinar o preparo dos pescados, ostras e mariscos, bem como de legumes, caldos, molhos e ragus. Minimizou e aboliu o uso excessivo de especiarias medievais que tornavam os pratos muitas vezes intragáveis. Introduziu temperos menos agressivos, como o alecrim, cerefólio, estragão, tomilho, funcho, entre outros mais. Ficou também conhecido pela publicação das receitas que exercitava no Palácio Real, para a refinada D. Maria e seu marido D. Pedro.
Com Lucas Rigaud, aparecem duas receitas muito levezinhas, e só no século XIX é que começam a aparecer receitas, refere Virgílo Gomes. O bacalhau era comida do povo e os registos que temos até essa altura são sempre da cozinha palaciana.”
Na rua, o burburinho crescia à medida que a carruagem real avançava entre a multidão.
– Que dia! – exaltou-se Fagundes
O cocheiro da monarca fez vibrar as rédeas e a carruagem seguiu lesta de volta à Ajuda. A noite já ia dentro, quando chegaram ao Palácio Real.
Hoje eram dois a sós, almas pares loucas e piedosas a saborear a cevada tostada, ostras ao natural e finas lascas de bacalhau cru, marinadas em limão e tomilho fresco. Fagundes e a Alteza eram como se fossem um só, a dialogar ferverosamente numa alma só.
3.
O bacalhau que começou verosimilmente como uma necessidade, tornou-se ao longo do tempo um hábito querido e um alimento de sucesso nos hábitos alimentares dos portugueses. Penetrou na linguística em função das diferentes localidades, épocas e dos diversos costumes, na toponímia – Rua dos Bacalhoeiros – e serviu para designar o aperto de mão e o sexo das mulheres e outros assuntos que não têm desenlace e ficam em “águas de bacalhau”. Também Margarida Moleiro (2008) refere que os “Enterros do Bacalhau” tratavam de parodiar o cerimonial da Justiça – com julgamentos em que o bacalhau se defendia das mais variadas acusações.
Desde aquela noite em que o cocheiro real, partilhara com a monarca o maravilhoso ceviche de bacalhau lascado, D. Maria I, tornou-se a causa principal, a preocupação e alegria principais da vida de Fagundes. Apaixonou-se por ela, mais do que por alguém, afeiçoou-se a ela mais do que ao vinho. Pudera! Nada a dizer, irra! – E a dignidade de um cocheiro real? – Começou a ser aflorado por uma situação de inconsciência profunda que lhe despertava ciúme por Lucas Rigaud, o cozinheiro da corte. Era como o tempero da sua relação com a monarca. Quando Fagundes se punha a cozinhar o bacalhau – que eloquência … onde ia buscar o talento? E como cuidava dele, que mimos lhe dava! O azeite brilhava como oiro sobre os lombos lascados – e não ao lustro escuro das manteigas e mostardas de Rigauld! – O “impostor” nem lhe tira a pele e as espinhas! – Imaginem! Não raras as vezes dava por si a falar sozinho, enquanto tratava dos cavalos. O bacalhau de Fagundes era de requinte aveludado, ao lado das maravilhosas castanhas.
– Eu dou-lhe as mostardas! – Bradava Fagundes.
Pois, antes da batata se espalhar pelo mundo, a castanha, a par da bolota, era a base da alimentação do povo.
A batata só foi introduzida em Portugal a partir dos séculos XV e XVI, altura em que os navegadores espanhóis e portugueses a terão provado no seu local de origem, não significando isto que a população a tenha cultivado de imediato para seu uso.
Tanto mais que os médicos da época tinham dela uma péssima impressão e consideravam-na, de acordo com Palmira Cipriano Lopes, entre outras desvirtuosidades, desenxabida, flatulenta, indigesta, debilitante e malsã, adequada apenas ao sustento de animais, sobretudo dos porcos.
Mais precisamente, a batata era tão desprezada na época, que foi acusada de dar poder às “bruxas de voar”, um “alimento de bruxa”, que provocava doenças de raquitismo e tuberculose.
Palmira, refere ainda que só no século XVIII, é que o francês Antoine Augustin Parmentier, teria convencido Luís XVI de que a batata poderia solucionar os problemas alimentares do povo francês.
A partir daí a batata passou a vulgarizar-se como alimento humano em França e a aumentar-se o seu consumo, passando de alimento malquisto e vilipendiado, a ter lugar na mesa dos nobres e burgueses europeus.
Ainda em 1885, Van Gogh viria a pintar a sua obra prima «Os comedores de batatas». Esta última representação tomou várias formas e foi realizado em litografia, a que se seguiram vários estudos a óleo, hoje existentes no Museu Vincent Van Gogh, dependente do Rijsksmuseum, em Amsterdão.
A batata só aparece como receita de culinária, para gente bem instalada na vida em 1715 e 1729, registada por Francisco Borges Henriques.
Lucas Rigaud, um dos cozinheiros de quem presentemente se fala muito, por ter sido cozinheiro da corte portuguesa nessa época, na sua obra Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinhar de 1780, dedica apenas duas linhas à batata em que diz: «As batatas depois de cozidas em agoa, e pelladas, comem-se com molho de manteiga, e mostarda».
A mostarda “chegou ao nariz” de D. Pedro*
Lucas Rigault andava empenhadíssimo no preparo da “table d’hôte” para o jantar real. O cozinheiro regente era um gordo e baixo senhor. Vestia casaca comprida, camisa branca e colete. As meias de seda, chegavam aos calções de cetim, na altura dos joelhos e calçava sapatinhos delicados com fivelas douradas. Os seus trajes eram engordurados e puídos, sem qualquer tipo de elegância. Rigault preparava três mesas sucessivas, com travessas de alimentos vários. Na primeira “coberta” sairiam os “Escargots na Chapa” com molho de mostarda. Depois vinha a “Bouillabaisse”, uma das famosas receitas da cozinha da Côte d´Azur, nascida de entre os pescadores marseillais. O que fazia a bouillabaisse de Rigault diferente dos outros caldos de peixe era a seleção de ervas aromáticas e especiarias e o uso de peixes ósseos do mar, a maneira como os peixes eram adicionados, um de cada vez, o molho chamado rouille e o método de servir, com pão torrado, manteiga e mostarda. A última “coberta” era na base doces e de frutas, como indicam os protocolos de então, seguidos nos banquetes reais.
– A última “coberta” não leva mostarda! Advertia Rigault a criadagem.
Não sabia porém Rigault, que os sintomas de alergia à mostarda, podem surgir repentinamente, mas às vezes podem levar até duas horas. Os sintomas mais leves podem incluir urticárias, formigueiros em qualquer parte do corpo, comichões em tudo o que é lado ou rinites. Os mais graves até podem incluir inchaços da face e da boca, asmas, dores abdominais, náuseas, vómitos, colapsos de consciência e até desinteria e infeções intestinais que podem expelir sangues e mucos. Depois da primeira “coberta” de escargots com molho de mostarda, a desgraça caiu sobre os comensais, mais agravada ainda pela exiguidade de instalações sanitárias do refeitório Real do Palácio da Ajuda. Imaginem todo o esforço de Rigault para que tudo saísse perfeito no tão esperado dia de servir pessoalmente a rainha. E agora imaginem bem o que aconteceu nesse dia! Foi o que aconteceu com Rigault! Desta calamidade real, apenas se livrou a Rainha, por não apreciar a mostarda…
– Mon Dieu, quelle vraie honte! (Meu Deus, que verdadeira desgraça) lamuriava-se Rigault.
O Cocheiro, foi acordado pelo alarido dos comensais a defecar à volta das cavalariças.
– Abençoada mostarda!
– Parece que Deus ouviu as minhas preces! Dizia para si mesmo enquanto emborcava mais um copo de vinho para a sossega.
4.
Para Fagundes chegaram tempos difíceis. A dúvida que nascera nele parecia-lhe agora um disparate. Desde aquela memorável tragédia que ocorreu durante o jantar real, Lucas Rigault, o cozinheiro francês da corte, deixara de assumir os destinos dos repastos reais. Dom Pedro ordenara ao Administrador do Palácio, preterir Rigault de todas as suas atribuições e responsabilidades.
Na corte corriam rumores, embora nunca tenham sido sustentados por qualquer evidência, que a amizade entre D. Maria e o responsável pelos estábulos reais já vinha de algum tempo e se tinham estreitado ainda mais, desde a saída a sós ao Terreiro do Paço, aquando da isenção de impostos ao bacalhau.
A Rainha continuava a manter encontros secretos com o cocheiro. Em pouco tempo já eram amantes. As idas da Rainha às cavalariças já não embaraçavam o cocheiro como nos primeiros momentos; porém quando ela se aproximava sussurrava-lhe sempre que o amor era mais arriscado do que a paixão.
– Então! Falamos? dizia Fagundes depois de emborcar um copo inteiro de vinho. Acompanhava sempre a sua exclamação com aquela agitação de mãos, sem a qual pelos vistos não pronunciava qualquer palavra.
– de que estamos à espera? – insistia altivamente Fagundes.
– Falamos, preciso de forças para falar – aprovava a rainha.
No entanto, apesar do desejo expresso pouco ou de quase nada falaram. Descobriu que andava de esperanças e o seu tio-esposo ainda não o sabia.
Mentalmente instável, D. Maria I, foi obrigada a aceitar que o filho tomasse conta dos assuntos de Estado. Vivia obcecada com as penas eternas que o pai estaria a sofrer no inferno, por ter permitido a Pombal perseguir os jesuítas; via-o como “um monte de carvão calcinado”.
Anos mais tarde, a sua instabilidade mental mais se agravou com o luto pelo seu esposo D. Pedro III e do seu filho, o príncipe herdeiro José, morto em 1788. Por isso João, seu filho e herdeiro assumiu a regência.
Para tratar D. Maria, veio de Londres o Dr. Willis, psiquiatra e médico real de Jorge III, enlouquecido em 1788, mas de nada adiantaram as sangrias e os “remédios evacuantes”.
A Família Real Portuguesa transfere-se para o Brasil devido ao receio de ser deposta, à semelhança do que ocorrera nos países recentemente invadidos pelas tropas francesas.
Passaram oito anos… oito anos inteiros.
Não mais vira Fagundes nem o seu filho Eleutério, a quem D. Maria tinha assegurado um futuro promissor no Palácio da sua amiga Maria Antónia de Hoháry, herdeira da Casa de Koháry, uma das famílias aristocratas mais ricas e poderosas, não só da Hungria, mas também da Europa.
Nunca antes Viena de Áustria, vivenciara um casamento tão ostentoso. As festividades duraram 9 dias, animadas por uma orquestra de 790 ciganos que tocaram ininterruptamente canções do folclore húngaro.
Eleutério, filho ilegítimo de D. Maria I e de Fagundes, pela sua fama de mestre em Cozinha Moderna, foi convidado para supervisionar a boda real do casamento dos pais de D. Fernando II.
Dona Maria viveu no Brasil, sempre em estado de incapacitação. Veio a falecer no Convento do Carmo, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1816, aos 81 anos de idade.
Em 1821, após o regresso da Família Real para Portugal, os seus restos mortais foram transladados para Lisboa e sepultados num mausoléu na Basílica da Estrela, igreja que ela mesma mandou erigir.
A partir da ida da Rainha para o Brasil, nada correra bem, a Fagundes.
Até o cavalo de varal coxeava.
– Mais uma desgraça para juntar à outra! Vociferava, como sempre o cocheiro.
– Há pouco tempo o levei para pôr ferraduras…
Emborcava cada vez mais vinho, tendo ganho igual cognome ao da rainha. Ficariam conhecidos para a história como “A Louca” e “O Louco”.
No entanto, morreu feliz, sonhando com uma pessoa que também morreu feliz. Revia-se em Eleutério, seu filho, que até húngaro falava e que viria a ser o precursor do bacalhau com cura portuguesa.