Título original: Trepov a boncolóasztalon (Trepov na mesa de dissecação)
Na morgue, dois fâmulos de bata branca vestiam o cadáver de um homem fulvo e batorete. A mesa de dissecação em mármore tinha espaço para outro corpo igual ao dele. O defunto, de corpo flácido e sem nobreza alguma era de altura menor e anafado, e até poucos dias antes ainda era chamado de Trepov. Simplesmente Trepov, como era conhecido por todos.
Os dois homens limpavam e tamponavam com talhe ágil e prazenteiro. Esfregavam a superfície do corpo com uma esponja húmida. Depois de vazarem a água ensanguentada que escorria pelo ralo da mesa, agarraram o morto pelos ombros, colocaram-no em posição sentada, e lavaram-lhe as costas brancas e adiposas. Um deles passou-lhe o pente pela cabeleira loira.
Fez-lhe o risco do cabelo no lado errado, e não do lado onde Trepov costumava fazê-lo.
“Ei, Vanya, ele não usava o cabelo assim”, disse o mais velho dos dois, “faz o risco do lado direito”.
Mas Vanya, que esboçava sentido de apurado humor, (por vezes até assobiava sob o seu hálito), retorquiu que assim seria como ele melhor aprouvesse.
Logo depois, já limpo e seco, levaram-no em braços para a outra sala.
Vestiram-lhe roupa interior, calçaram-lhe meias e sapatos finos e um uniforme com entrançados de palma dourada.
O mais velho, deslumbrado com as medalhas, muito embora fosse algo incomum e até interdito aos empregados da morgue, começou a filosofar e a dissertar pretensiosamente:
– “Para que precisava ele de tantas condecorações? Agora resta-lhe apenas levá-las consigo para o batel do inferno”.
– “Foram-lhe dadas para que acabasse assim”, respondeu Vanya, “Era o que faltava os cavalheiros morrerem na horizontal”. Nada disso; cortamos-lhe as tripas e pomos-lhe estopa no sedeiro, para que não respinguem. (Vanya falou com raiva, como quem faz pregações). O que acharia, Don Nikolai, se este porco morresse um ano antes, quantos russos ainda estariam vivos?
Após a pergunta, fizeram uma pausa, para ajustar o colarinho da camisa ao defunto.
O mais velho só respondeu quando, com alguma dificuldade, lhe conseguiu ajustar a malha ao pescoço.
– “Certamente haveriam outros no seu lugar. Olha, Vanya, o Czar precisava de pessoas assim, e se não tivesse sido assim, o Czar certamente teria corrido com ele. Teria escolhido outra pessoa”.
Vanya não estava convencido da veracidade do raciocínio. Começou a proferir maldições angustiadas, e finalmente afirmou que o morto tinha sido um porco, e que era culpado de ter mandado assassinar mais pessoas do que era realmente necessário.
Nesta altura já tinham arroupado o cadáver. O velho acendeu o cachimbo, olhou para o traje do morto, ajeitou-lhe as condecorações de ouro e esmalte, tirou-lhe os punhos do uniforme, e cruzou-lhe as mãos sobre o peito. Depois, o falecido foi colocado num carrinho de ferro coberto de estopa, e o velho abriu a porta para o levar até às escadas.
De repente, Vanya, o mais novo, fechou a porta.
– Ei, porque é que a estás a fechar a porta quando eu acabei de a abrir? – vociferou o mais velho.
– Espere, Don Nikolai, tenho algo a fazer.
– O que é que vais fazer?
– Vais ver imediatamente.
Vanya deu a volta à morgue, e espreitou para a sala de dissecação. Finalmente aproximou-se do cadáver, levantou rapidamente a mão, e desferiu-lhe três valentes murros no senho.
Depois dos bofetões, os dois homens entreolharam-se mudos e quedos.
“Fi-lo”, disse Vanya, “porque teria sido mais infame se não tivesse ultrajado este bandido impudente e assassino, o homem mais depravado que alguma vez apodreceu na terra. Tive de aproveitar a oportunidade!”.
O velho acenou com a cabeça, e o mais novo continuou a falar, rindo e ganhando coragem:
– Claro que vou esbofetear este porco, e vou dar-lhe também um pontapé!
Entusiasmado com o novo plano, subiu à mesa onde o morto jazia; cautelosamente, e tendo cuidado para não lhe sujar a roupa, deu-lhe uma violenta pernada no rosto. Depois desceu. O velhote já trazia a esponja. Lavaram-lhe a cara novamente, pentearam-lhe o cabelo e riram-se com um riso forçado, mas não voltaram a falar no assunto.
Finalmente, começaram a empurrar o carrinho para fora. O mais velho estava prestes a abrir a porta novamente.
– “Espera mais um pouco”, o outro parou-o, “só mais uma vez!
Ele preparou-se e deu-lhe uma murraça com toda a sua força.
– “Bem, podemos sair agora”, disse gaguejando, com a cara afervorada de exaltação.
Após a entrega do cadáver, regressaram tranquilamente à sala de dissecação.
Passado algum tempo, Vanya disse:
– Sabe, Don Nikolai, se eu não o fizesse agora, ficaria com arrependimentos para o resto da minha vida. Pense só, que ocasião! Que Deus não tenha piedade de mim se não o houvera feito por bem.
– “É bom que o tenhas feito”, disse o mais velho comedido.
À noite, quando foi para a cama, Vanya esfregava a as mãos a pensar no que diria o seu filho que a sua mulher estava à espera, quando mais tarde lhe relatasse a proeza de hoje. Certamente ficará orgulhoso do seu pai. O rapazinho olhará para ele com os seus grandes olhos, como quem olha para um semideus.
Mas não pensou nisso por muito tempo, pois logo adormeceu com a respiração pura de pessoas sanas.