Anita Moskát
Na Hungria de hoje, os romances de Anita Moskát, ainda não gozam de grande popularidade. Em As Crianças de Babel ela reinterpreta a história bíblica da Torre de Babel, dissecando a relação entre religião e superstição, massas e fé. Nas páginas do seu livro, “Irha és bőr” (Couro e Pele), publicado em 2019, a Humanidade enfrenta uma nova espécie dotada de uma obscura inteligência. Os “animais”, os “humanos” metamorfoseiam-se em criaturas meio-animalescas, meio-humanas. Mas surge a questão, o que nos torna humanos e o que acontece se pensarmos de uma forma estereotipada sobre grupos que são diferentes de nós. Segundo Moskát, o género, a fantasia, oferecem uma oportunidade para examinar problemas bem conhecidos e bem atuais nos dias de hoje. Neste livro, Anita Moskát, revela-nos um mundo brutalmente original e implacável no qual o animal e o homem se fundem organicamente. Esta história irá certamente permanecer connosco durante muito tempo.
…
Foram necessários cinco meses para treinar Kirill no centro de mutação.
Passou o primeiro dia a vomitar. Ficou enjoada com o cheiro da sala: o detergente no chão, o desinfetante a irritar-lhe a pele, e o fedor picante da lixívia no ar que lhe trazia lágrimas aos olhos. Não sabia onde estava. Não compreendia porque é que o seu coração batia. Sentia que algo não estava bem. Há não muito tempo ainda corria através das árvores, as suas patas já não trovejam no chão, e agora deitada de costas numa cama de sarrafos, sente o corpo rígido e os músculos a arder, só conseguindo mover o pescoço para olhar para os outros recém-mutados, a choramingar perto dela.
Mais tarde compreendeu o que se passava à sua volta: que uma mão espreitando por baixo de uma manta branca estava a inserir-lhe um chip no couro e a dar-lhe tomas de vacinas; que, devido à metamorfose, os seus músculos se contraíam, tornando-os flácidos e inexperientes, e por isso não se conseguia mexer; que alguns assistentes lhe metiam comida na boca que engolia ruidosamente, e quando a areia transbordava dos beiços, apanhava-a do chão com a língua.
– “Vocês já não são animais”, diziam-lhes eles, embora no início nem sequer tenha compreendido o significado das palavras. – “É preciso aprender a viver como os humanos”.
Quando se vestiu pela primeira vez, Kirill ficou alarmada, o tecido era áspero e arranhava–lhe as costas, o colarinho da roupa estava a estrangulá-la. A camisa parecia de varas e muito apertada, uma prisão na qual a queriam encarcerar. Agarrou a mão da assistente e mordeu-lhe o pulso. Depois deitou-se no chão a tentar libertar-se da roupa, acostando-se ao pavimento até acabar deitada, inerte e exausta…
Tiveram de ensiná-la a andar com duas pernas. Agarraram-na, meteram-na entre umas barras da altura da anca, mas logo tropeçou para diante com os tornozelos dobrados para dentro. Os joelhos rangeram e os cascos rasparam o chão, tão pesados que nem chumbo. Alguns mutantes desistiam de se debater e continuavam a andar como quadrúpedes. Muito embora já usassem os seus novos membros, caíam sempre de bruços.
– “Só os que estão vestidos e alinhados na fila e a andar em duas pernas, têm direito a jantar”, disse a assistente ao bater no caldeiro com a concha.
– “E aqueles que utilizam a cagadeira, claro”.
No início, muitos deles cagavam na parte de trás das alas. Tentavam enterrar a merda coçando as suas garras e patas no linóleo, enquanto os mendigos invejosos do seu território manchavam as paredes, esguichando-as.
Semana após semana, ganhavam destreza e compreendiam cada vez mais do mundo. Assim que pronunciavam as suas primeiras palavras, os assistentes atribuíam-lhes um nome aleatório a partir de uma base de dados. Kirill tentou murmurar o seu nome. Kirill, Kirill, Kirill – como um galho seco a ranger debaixo dos pés. Uma etiqueta com o género era-lhes colada ao traseiro: Capreolus – como quem expele um escarro da garganta.
O que ela mais gostava era dos exercícios de entoação. Assistia enfeitiçada enquanto os lábios do instrutor formavam sons e tentava memorizar cada palavra, mas em várias ocasiões fugiu das atividades artesanais.
Encontravam-na sempre na retrete e levavam-na de volta para o quarto onde os outros estavam. Por vezes tinham de passar por objetos em forma de lua, estrela ou atravessar buracos com as mesmas silhuetas. Outras vezes tinham de construir torres a partir de cubos de brincar. Ninguém se importava que Kirill não tivesse mãos para os exercícios, deixavam-na a lutar com os cubos agarrados entre as patas. Todo o seu corpo se concentrava, as suas orelhas de cervo retorciam-se. O movimento era estranho para ela. As patas não tinham sido moldadas para isso. Uma vez, ela estendeu a mão para agarrar a peça seguinte, levou-a até ao outro extremo, mas o balde caiu-lhe entre os dois blocos córneos, destruindo a construção semi-acabada.
A gata que estava entretida com o seu castelo ria-se de Kirill. Nisto, estendeu o braço, entrou no seu território, e arrancou-lhe algumas torres. A gata tinha erguido uma autêntica fortaleza. Antes, eram apenas arcos e ameias. Na mão esquerda três e na mão direita, quatro dedos humanos se perfilavam. Acenou-lhe com jactância. É habilidosa, pensou Kirill, e tem facilidade em rir. Largou um coice com as patas, como se fora um taco, em direção ao castelo da gata; uma avalanche de cubos de construção caiu ao chão com grande estrondo.
– “Tens de controlar a tua ira”, disse-lhe Laura, a assistente mutacional, mais tarde no seu gabinete. Kirill gostava da mulher, ela não usava sabonetes de perfumes baratos como as outras.
– “Não podemos permitir que aqueles que mostram sinais de agressividade saiam do centro”.
Kirill sentou-se à sua frente com as pernas enroladas, não conseguia tirar os olhos de cima dela.
– “A metamorfose é injusta”, disse Kirill. Ela tinha praticado o seu discurso durante os escassos cinco meses, as palavras ainda rolavam da sua língua de uma forma estranha, como se ela estivesse a mastigar algo não comestível.
– “Não acha que sim?”.
– “Claro que sim”, reconheceu Laura.
– “Tanto quanto sabemos, depende da sorte de hoje em dia, fizeste asneira com ambas as patas, eu sei, mas tens de dar o teu melhor em cada situação, e reconhecer que poderia ter sido bem pior”.
No centro, eram dadas aulas de linguagem gestual a grupos especiais para aqueles que não conseguiam falar. Havia aqueles que usavam as patas traseiras e não as dianteiras, e dos seus quadris humanos sobressaíam duas pernas absolutamente inúteis. Um homem-grou tinha um pescoço esguio igual ao dos grous, que não podia suportar a nova cabeça de sapiens, de modo que a criatura passou o dia ofegante no seu estrado, e quando se sentou, descansou o queixo na palma da sua mão. Kirill ouviu uma conversa dos seres de bata branca, que se preparavam para o sacrificar. O seu pescoço era tão adelgaçado que nem um fio de esparguete.
– “Pode aprender tudo o que quiser”, continuou Laura.
– “No primeiro ano, o seu cérebro prodigioso, tem de tirar partido das suas capacidades”.
– “A maioria de vós quer desistir imediatamente, sim”.
– “É verdade que os faz-tudo são imediatamente contratados pelas fábricas, mas poderia ficar no centro para continuar a estudar.
– “Aqui está a sua oportunidade”.
Kirill teria gostado de trocar esta oportunidade por dedos humanos. Nunca seria capaz de desapertar a tampa de uma garrafa de refrigerante, ou abotoar a camisa. Não comeria de faca e garfo, nem conduziria um carro, nem tocaria violino, nem ataria os atacadores, nem agarraria a asa de uma tigela. O mundo foi concebido para sapiens, todas as ferramentas cabiam nas suas mãos, embora o corpo de um veado orelhudo não fosse pior do que o dos humanos.
Kirill disse lentamente, saboreando as palavras, para cometer o menor número possível de gafes:
– “Se um dia eu sair do centro, vou inventar objetos que funcionem com as patas. Ao não os conseguirem usar, os humanos enxugarão dos seus olhos todas as lágrimas e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem clamor, nem dor . Essa será a nossa justiça”.
Laura deixou sair um suspiro. Kirill já sabia distinguir vários tipos de suspiros, os impacientes, os zangados, os resignados, mas este parecia agora bastante compassivo. A mulher abanou a cabeça:
– “Terei de registar no seu ficheiro”, disse ela, “Criatura hostil aos homines sapientes!”.