Nascido em 1946 em Budapeste, o premiado dramaturgo, romancista e tradutor György Spiró ganhou reputação como uma das figuras literárias mais proeminentes e prolíficas da Hungria do pós-guerra. É professor na Universidade ELTE de Budapeste, onde se especializa em literatura eslava.
György Spiró
Não vi uma única fotografia dele, embora haja sem dúvida uma do seu casamento. No seu apartamento na Rua Dohány, que alugava juntamente com uma família desconhecida, a minha avó guardava muitas fotografias; também a dela lá estava pendurada na parede – fiquei espantado com a beleza da minha avó feia – e os filhos também lá estavam pendurados, em crianças, jovens e adultos, mas não havia marido em lado nenhum.
O meu pai nunca mencionou o seu pai, e a minha avó nunca falou do seu marido; a minha mãe por vezes insinuava que havia alguma tensão entre ela e o seu sogro, mas o meu pai calava-se nessa altura. Também não falavam da família do meu avô, como se o meu pai não tivesse primos, o que era implausível. O meu avô morreu no início dos anos 40, por isso ele não morreu num campo, não morreu num gueto, não me contaram o que lhe aconteceu. Não sei onde ele foi enterrado, nunca ninguém cuidou dele. Ele teria morrido aos cinquenta e poucos anos de idade.
Tinha aprendido para costureiro, a sua mulher também; cortavam e costuravam. Criaram dois filhos que aprenderam alemão, inglês e francês e a tocar violino e logo abraçaram carreira: o meu pai em Brno e o seu irmão mais novo, que entrou no numerus clausus[1], em Pest. Ambos os filhos nadavam, jogavam ténis e xadrez, tudo desportos dispendiosos e de cavalheiros. Os meus avós cortavam e costuravam. O meu pai e o seu irmão nasceram em Miskolc e mudaram-se para Budapeste no início da década de 1920, porque depois da guerra havia uma grande pobreza no campo, ninguém tinha fatos feitos à medida.
Não compreendo porque não levaram o meu avô para a guerra, será que o teria conseguido à custa de dinheiro, ou não terá ido às sortes devido a doença?
Viviam remediados, ganhavam apenas para os filhos, cortavam, mediam e costuravam. Não iam à sinagoga, não falavam iídiche. Não sei se eles tinham amigos, a minha avó não tinha nenhum. Não saíam, não liam; as crianças liam, tocavam violino, remavam, nadavam, jogavam ténis, xadrez e futebol e estudavam.
Porque é que o meu pai nunca me falou do seu pai? Teria ele vergonha de ser um alfaiate e não um intelectual? Ou teria vergonha de ser um lojista e não um operário de fábrica? O meu avô cortava, media e cosia com a sua mulher, que não o amava e os seus filhos também não falavam dele.
O seu nome era Gyula. Nos anos oitenta do século XIX, os seus pais tinham-lhe dado um nome ostensivamente húngaro, que foi o que lhe deram para o acompanhar ao longo da vida. Cortou, esfarrapou, coseu durante algumas décadas.
Ninguém o amava.
Não havia vestígios dele.
[1] O numerus clausus era uma lei discriminatória na Hungria nos anos 20 que limitava o acesso dos estudantes de origem judaica às universidades.
Fonte: Cortesia da Fundação Húngara do Livro (Magyar Könyv Alapítvány) e da Revista Digital Lho.es
Versão Portuguesa: Arnaldo Rivotti